Bem que eu quis
Depois de tudo ainda ser feliz
Agora sei que o caminho tanto faz
Que a minha estrada precisa
Atravassar o rio em direção ao mar
E minha jangada estará sempre lá
Caminho a passos firmes e bem devagar
Não tenho pressada chegança
Vou deixando os rastros para trás
Salpicando gotas de esperança
Junto de mim levo tudo o que jaz
A vida me ensinou a contemplar
Por esta janela que todos os dias
Escancara-se em cores
Espalhando perfumes pelo ar
Agora tanto faz
O meu prazer é querer sempre mais
Plantar amor por onde passar
Trazer nos olhos o sorriso da criança
Que um dia dentro de mim existiu
Quero sentir o colo de mãe
Acalentando meus sonhos
E adormecer serena a navegar
Por onde for
O cartaz arranha a cortina no drapear do vai-e-vem do vento, enquanto uma nuvem de pó se espalha pelo rosto em cujo olhar a alma penetra -,olhar que nada vê. O silêncio estala na janela acendendo lembranças do colo paterno em esparsas recordações de infância que desaguam lágrimas pelos olhos secos da saudade que ficou.
O frio pesado e teimoso cingiu o céu naquela manhã de julho. Cavalgando altivo e sem pressa pela rua ele não se importou com o vento gelado a cortar-lhe a pele. Paramentado com sua farda de gala e seu chapéu emplumado, balbuciou frases sem sentido e inaudÃveis. Falou consigo mesmo. Parou no meio da praça, Desembainhou sua espada e a ergueu bem alto. Estufou o peito e soltou o brado: "Viva o povo brasileiro!" A multidão que por lá passava não compreendeu aquele gesto e muito menos o enorme sorriso de lagarto que se abriu em seu rosto. Perceceu um quê de ironia,uma nudez das gentes, que identifica os pensamentos ocultos em sua dimensão ética e polÃtica. A multidão circulou à sua volta olhando,com a maior distância,paraaquela figura fantasmagórica.Eele ali estático no meio da praça,iniciou um monólogo interior expondo os acontecimentos passados, suas impressões e fantasias de macho. Pronunciou frases incompletas, retorcidas como também retorcida era sua figura, utilizou-se de elementos mágicos, uma sátira, para retratar seu espaço, seu feudo em contraste com a vida urbana...
"Se eu tiver um ano a mais de vidas..." Assim ele iniciou sua fala, observando os urubus voando em meio à ventania. Viu que eles não batiam suas asas, apenas deixavam-se flutuar. E ele denominou a isso, sabedoria. Será essa a certeza de uma ausência de mundo? Domundo das essências,emestado puro.sem atritoslibrando as contradiçõesda existência? Seráum convite para andar pelos caminhos da nossa verdade onde mora o essencial? Um exercÃcio espiritual,umjogo de faz de conta sabendo que o tempo é curto? Em sua lucidez poética e teológica ele sabe que épreciso viver a vida com sabedoria paraque ela nãoseja estragada pela loucura a nos circundar. É o canoeiro que amava os jardins, face invisÃvel de Deus, e os ipês amarelos, seu paraÃso. Contemplou aquele lugar, agora abandonado,com a caixinha de abelhas apodrecida,omato crescido e os peixes,coitados... Na sua vadiação contemplativa o jardim se tornara um lugar de passagem... Mas o que foi que fiz com meu jardim? Eele se apressou em cuidar de seu jardim,dos seus ipês amarelos...
Diante do tribunal relatou a história de sua famÃlia que escrevera na prisão. "Sou descendente legÃtimo dos reis brasileiros, castanhos e cabras da Pedra do Reino..." Ao lado do teatro de mamulengos recitou sua vida em versos compassados de cordel, entre repentes e emboladas e os dedicou aos doze 'cavaleiros' entre eles seu próprio pai. Improvisou rodeios e rimas num 'Movimento Armorial' de expressões populares e eruditas para encenar sua alegoria numa sátira social à vulgarização. Fez de sua oratória uma maneira de desvelar a mentira das autoridades, integrando homens e mulheres por meio da compaixão. Contou seus 'causos' apenas para satisfazer um desejo inventivo, mentiroso e ingênuo, condenendo seus personagens com prazer desinteressado. Derrotou seus adversários com argumentos cheios de compadecimento e misericórdia. Dividido entre o mundo material e o divino, escreveu sua carta apenas para desacreditar o santo...
Como volutas de fumaça de um cigarro seus corpos se evaporaram sob a luz púrpura, tênue e fria de julho. João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna, três grandes representantes da nossa literatura cujas vozes emudeceram quase oa mesmo tempo. Irreverências, ironias,sátiras, reflexões existencias, ideias que permanecerão gotejando no chão do jardim fazendo florescer mais e mais belos e amarelos ipês...
Ana Lopes, in Colóquios 2016
E esteja repleto de
Um ensurdecedor silêncio escorre pelas paredes do barracão vazio de cores e brilhos.
Os sons, os burburinhos de vozes alegres e festivas emudecerem.
Cederam lugar aos gorjeios das aves que ainda teimam em pisar o chão outrora
repleto de plumas, lantejoulas, paetês, purpurinas e cetins.
Tudo agora é um imenso vazio.
Vazio da alegria colorida; dos sorridos fartos; dos suores a
lambuzar os rostos; das mãos habilidosas
a tecer os sonhos; das alegorias
e adereços a balançar entre as estruturas de ferro e gesso em meio ao pó que
subia como filetes de fumaça coroando as cabeças assoberbadas de ideias.
Os tambores emudeceram.
As cuÃcas não gemem mais.
Os repiques evaporaram pelo ar pesado como fumaça que se esvai no
vento da incerteza de tudo.
Onde estão os alegres foliões que enchiam de euforia e luz as
paredes cruas do barracão?
Em que nuvens se esconderam osbroçhos,as luzes que refletiam nos olhos das gentes e se espalhanam pela imensidão das ruas?
Porque se calaram os gritos, as vozes?
Porque cessaram os gritos; os aplausos; as torcidas?
No céu uma nuvem espessa e fria soprou pelo ar todos aqueles
lampejos de felicidade como se varresse a poeira acumulada pelo tempo, para
debaixo do tapete.
Adormeceu os sonhos.
Escondeu os brilhos.
Embaralhou os passos.
Distorceu os compassos.
Amarrou os laços.
Emudeceu as vozes.
O grito ficou preso na garganta.
Os passos ficaram soltos no ar.
Os brilhos adormeceram nos sonhos.
O que restou?
Restou a esperança ainda escondida nos cantos do barracão vazio.
Esperança de que tudo possa outra vez se erguer do chão frio e fluido encher os pulmões de ar; colorir os céus de euforia e brilho; acertar os passos no compasso do ritmo inebriante da marcação.
E então ouvir a multidão gritar uma vez mais: "É campeã!"
Ana Lopes
Sobre mim

Ana Maria de Souza Lopes
Sou natural de Juiz de Fora, uma cidade fincada no interior das Minas Gerais.
Meu contato com crianças de periferia, bem como as histórias ouvidas na infância, permitiram-me apurar o olhar e os sentidos para melhor compreender o mundo ao meu redor.
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