O frio pesado e teimoso cingiu o céu naquela manhã de julho. Cavalgando altivo e sem pressa pela rua ele não se importou com o vento gelado a cortar-lhe a pele. Paramentado com sua farda de gala e seu chapéu emplumado, balbuciou frases sem sentido e inaudíveis. Falou consigo mesmo. Parou no meio da praça, Desembainhou sua espada e a ergueu bem alto. Estufou o peito e soltou o brado: "Viva o povo brasileiro!" A multidão que por lá passava não compreendeu aquele gesto e muito menos o enorme sorriso de lagarto que se abriu em seu rosto. Perceceu um quê de ironia,uma nudez das gentes, que identifica os pensamentos ocultos em sua dimensão ética e política. A multidão circulou à sua volta olhando,com a maior distância,paraaquela figura fantasmagórica.Eele ali estático no meio da praça,iniciou um monólogo interior expondo os acontecimentos passados, suas impressões e fantasias de macho. Pronunciou frases incompletas, retorcidas como também retorcida era sua figura, utilizou-se de elementos mágicos, uma sátira, para retratar seu espaço, seu feudo em contraste com a vida urbana...
"Se eu tiver um ano a mais de vidas..." Assim ele iniciou sua fala, observando os urubus voando em meio à ventania. Viu que eles não batiam suas asas, apenas deixavam-se flutuar. E ele denominou a isso, sabedoria. Será essa a certeza de uma ausência de mundo? Domundo das essências,emestado puro.sem atritoslibrando as contradiçõesda existência? Seráum convite para andar pelos caminhos da nossa verdade onde mora o essencial? Um exercício espiritual,umjogo de faz de conta sabendo que o tempo é curto? Em sua lucidez poética e teológica ele sabe que épreciso viver a vida com sabedoria paraque ela nãoseja estragada pela loucura a nos circundar. É o canoeiro que amava os jardins, face invisível de Deus, e os ipês amarelos, seu paraíso. Contemplou aquele lugar, agora abandonado,com a caixinha de abelhas apodrecida,omato crescido e os peixes,coitados... Na sua vadiação contemplativa o jardim se tornara um lugar de passagem... Mas o que foi que fiz com meu jardim? Eele se apressou em cuidar de seu jardim,dos seus ipês amarelos...
Diante do tribunal relatou a história de sua família que escrevera na prisão. "Sou descendente legítimo dos reis brasileiros, castanhos e cabras da Pedra do Reino..." Ao lado do teatro de mamulengos recitou sua vida em versos compassados de cordel, entre repentes e emboladas e os dedicou aos doze 'cavaleiros' entre eles seu próprio pai. Improvisou rodeios e rimas num 'Movimento Armorial' de expressões populares e eruditas para encenar sua alegoria numa sátira social à vulgarização. Fez de sua oratória uma maneira de desvelar a mentira das autoridades, integrando homens e mulheres por meio da compaixão. Contou seus 'causos' apenas para satisfazer um desejo inventivo, mentiroso e ingênuo, condenendo seus personagens com prazer desinteressado. Derrotou seus adversários com argumentos cheios de compadecimento e misericórdia. Dividido entre o mundo material e o divino, escreveu sua carta apenas para desacreditar o santo...
Como volutas de fumaça de um cigarro seus corpos se evaporaram sob a luz púrpura, tênue e fria de julho. João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna, três grandes representantes da nossa literatura cujas vozes emudeceram quase oa mesmo tempo. Irreverências, ironias,sátiras, reflexões existencias, ideias que permanecerão gotejando no chão do jardim fazendo florescer mais e mais belos e amarelos ipês...
Ana Lopes, in Colóquios 2016
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