2020: o ano não vivido


Um novo começa e as pessoas carregam dentro de si muitas incertezas, muitas perguntas sem resposta, muitos anseios. Não têm noção do que esperar, que rumo tomar. Tudo é ainda muito nebuloso...
Então como num passe de mágica: Ô abre alas que eu quero passar...
A multidão aglomerada nas ruas acompanha os blocos de carnaval que enchem de alegria os dias de Momo. O som dos tambores, repiques e atabaques ressoa pelo ar numa frenética e alucinada euforia. Em cada rua, em cada esquina mais e mais foliões adentram os blocos formando uma imensa e disforme massa que se agita entre requebros e deboches, fazendo caras e bocas para a foto que irá circular mundo afora. Os dias passam e os foliões não perdem o pique e o entusiasmo. Consomem-se em tamanha agitação para esquecerem seus problemas cotidianos, suas vidas sem graça ou sentido, a mesmice de seus dias, as suas incertezas.
E assim o tempo passa entre folias e destemperos. A multidão, em sua vertiginosa viagem ao mundo da fantasia, se esquece de pensar nas coisas cotidianas, nas lições aprendidas desde sempre. Entregam-se de corpo e alma a esse momento fugaz querendo agarrá-lo, prendê-lo para sempre em suas vidas, como se ele fosse uma fantasia. Tudo ainda era alegria. O som dos tambores ainda ressoava pelo ar, o brilho da purpurina e do paetê das fantasias ainda estava refletido nas pupilas de cada folião. As rainhas de bateria nem mesmo haviam retirado dos ombros o resplendor emplumado. Os ritmistas ainda tocavam os últimos acordes do samba enredo em seus instrumentos. O mestre sala e a porta bandeira ainda faziam a última reverência para a comissão julgadora...

No ar uma nuvem escura começou a ofuscar os últimos momentos de euforia. O céu cingiu-se de negro como noite sem luar.  De repente as pessoas ficaram invisíveis. Os dias ficaram invisíveis. Tudo ficou invisível. E o que antes era somente cor e brilho vestiu-se de um cinza escuro alternando com um branco cinzento. As pessoas encolheram-se em suas redomas como pássaros nas gaiolas. Uma ameaça invisível começou a se espalhar pelo ar numa rapidez nunca vista antes. E tudo mudou. O comportamento das pessoas mudou. Elas não estão mais aglomeradas. Cada uma vive ensimesmada em seu próprio espaço. Não se tocam, não há mais os efusivos beijos e abraços. Agora usam máscaras quando precisam sair à rua. Mas não são mais aquelas máscaras de antes.  As máscaras cheias de brilho, de cor. As máscaras da alegria, da irreverência, do deboche. Agora são máscaras sisudas, sem brilho, descoloridas. São máscaras para proteger, para preservar a vida. Os encontros, as festas a diversão cedeu lugar à vida entre quatro paredes. O sentimento de medo do desconhecido, as informações desinformadas, o não saber o que realmente acontece ou poderá acontecer está a cada dia transformando as pessoas em pequenos robôs. Repetem as mesmas ações cotidianamente. Temem por suas vidas a daqueles que amam. Não conhecem o inimigo que pairou sobre suas cabeças e elas não podem vê-lo. Somente o pressentem. É tudo uma incógnita.

 A paisagem das cidades mudou. As ruas viraram um deserto de gente. Não há mais pessoas andando por elas. Não há mais cinema. Não há mais diversão. Não há mais vida lá fora. Tudo se resume a quatro paredes. Até mesmo as árvores parecem estar com preguiça de balançar-se ao vento. Os pássaros recolheram-se em seus cantos. Não gorjeiam mais aqui. Emudeceram. As borboletas não alçam seus voos coloridos na paisagem agora difusa e sem graça.  Nada se move. A paisagem é sempre o mesmo quadro dependurado na parede invisível da incerteza. Pode ser visto de qualquer janela. O vazio de cores, de formas, de luzes, de tons e sons torna os dias cada vez mais irrespiráveis de vida e desejo. Como um teatro, em cujo palco, cada ator imperfeito, desempenha seu papel com o coração quebrado em tremor, vergado em sua própria insignificância, a monotonia acompanha os dias modorrentos.  A ameaça invisível, com seu alfanje norteia o figurante cujo papel é desdenhado, e o vê quebrar-se em tremor no rito solene da sua impermanência. E o figurante percebe claramente que tudo está mudando, nada mais permanece igual. Sua vida agora é só um instante, uma leve brisa. Observa através da janela envidraçada apenas um vislumbre, uma fagulha daquilo que um dia foi e sente as cinzas espalharem-se por suas entranhas.

                                                                          Ana Lopes




Ana Maria de Souza Lopes

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